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sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Fora de si - Arnaldo Antunes

Coletânea de poemas e canções da MPB de autores e períodos diversos.
Cada texto é seguido de breve análise, literária e/ou gramatical, que aponta interessantes caminhos para apreciar a poesia.

Fora de si

Eu fico louco
eu fico fora de si
eu fica assim
eu fica fora de mim
Eu fico um pouco
depois eu saio daqui
eu vai embora
eu fico fora de si
Eu fico oco
eu fica bem assim
eu fico sem ninguém em mim.

De saída, quer dizer, já a partir do título, a letra é afrontosa.

Eu fico fora de mim ou eu fico fora de si?

Nós nos enganamos ou nós se enganamos?

No padrão culto da língua, devemos falar "eu fico fora de mim" e "nós nos enganamos". Mas ninguém vai negar que as construções "fora de si" e "nós se enganamos" são ultracomuns na língua popular. Por que será que o autor não respeitou a correspondência entre os pronomes (eu/me, mim)?

Vejamos os primeiros versos da composição:

"Eu fico louco
eu fico fora de si
eu fica assim
eu fica fora de mim".

Vamos analisar cada um dos versos. Você encontrou algo estranho no primeiro verso? Nada estranho, não é mesmo? Não há nenhum problema com "eu fico louco", a concordância verbal está bonitinha e a nominal, ao que supomos, também. Quer dizer, pela flexão no masculino do adjetivo, imaginamos que o eu da canção é um homem. Até aí, tudo bem.

E o segundo verso? Este retoma o título. Por que a frase saiu dos trilhos da norma culta? Se você ler direitinho o primeiro verso, vai começar a entender por quê: o sujeito está ficando louco, está ficando com "parafusos a menos".
Realmente, a julgar pelo rumo que vai tomando essa letra, ele se desmiola cada vez mais. Ora, esse desarranjo mental tem como conseqüência um desarranjo sintático.
É como se os termos nas frases ficassem girando em falso, sem ligação entre si. Desreguladas, as frases ficam como que sem pé nem cabeça, ou com pé e cabeça trocados.

Vejamos o terceiro e o quarto versos. O que aconteceu? O pronome eu pede obviamente o verbo flexionado na primeira pessoa do singular (fico).
Mas o compositor não levou em conta essa concordância e colocou o verbo na terceira pessoa do singular:"eu fica assim".
Parece até gringo falando a nossa língua, não é? Na linha seguinte, o fora de si é corrigido para fora de mim, mas o certo continua errado aqui.
Assim, em "eu fica fora de mim" temos um movimento de afirmação e de transgressão da própria integridade (mental e sintática). No entanto mesmo a correção sintática pode indicar transgressão. Em "eu (...) fora de mim", a norma gramatical, respeitada, indica desvio psíquico, o que é confirmado pelo conjunto da frase: "eu fica fora de mim".

A letra opera mínimas variações em torno dessa célula: "ficar fora de si".

Arnaldo Antunes pinçou do dia-a-dia um desvio gramatical e o tomaram ao pé da letra como se tivessem entrevisto nele potencialidade expressiva. E não é que tinha mesmo? Quem vai negar que "eu fico fora si" é forma perfeitamente casada ao conteúdo? Ou, repetindo o que dissemos acima, que o desarranjo sintático aqui imita o desarranjo mental? Quem vai negar isso, não é mesmo? Eu é que não.

Vamos ver agora o resto da música:

"Eu fico um pouco
depois eu saio daqui
eu vai embora
eu fico fora de si
Eu fico oco
eu fica bem assim
eu fico sem ninguém em mim".

"Eu fico um pouco/depois eu saio daqui". Como assim? A que se refere "daqui"? Então o letrista diz:"eu vai embora/ eu fico fora de si". Ora, "daqui" é o "eu", para fora do qual ele sai e no qual ele fica só "um pouco".
O advérbio "fora" significa exteriormente, na parte externa, ou lugar diferente do da residência habitual ("dormir fora"), entre outras acepções que matizam o sentido original de lugar exterior. Bem, esse advérbio, aplicado à pessoa, ao eu, transmite a este características de lugar. É como se "fico fora de si" pudesse ser lido também como "dormi fora", como se "fico um pouco (em mim)" parodiasse "fico um pouco em casa".

Constrói-se, desse modo, uma afinidade entre o estar em si e o estar em casa.
Note-se ainda que o verso "eu fico fora de si" retorna na passagem citada, logo depois de "eu vai embora". O ir embora de si, formalizado pelo desvio de concordância, é ficar fora de si.
O eu sai de si mesmo e deixa a casa vazia, "sem ninguém em mim". Mas esse "mim" não é o eu. Calma! Não vá ter um torcicolo mental!... Você não vai apanhar de jeito nenhum esse cara. Quando você estiver indo, ele estará voltando.
Ele deu só pistas falsas. Ele deixa uma luzinha acesa, e você acha que ele está em casa; ele começa a acertar o passo gramatical, e você já acha que ele achou a saída do labirinto. Não se iluda: a casa está vazia e o seu dono está errando por aí ("errando" no sentido de cometer erros e de vaguear, de andar a esmo).

Fonte: TV Cultura - Alô Escola

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